Vivemos totalmente imersos na crena inabalvel da onipotncia do amor e por essa orientamos e educamos nossos filhos. Essa iluso difcil de abalar, pois est ancorada no dogma de que o amor, a f no amor move montanhas.
Com muita frequncia, encontro pais tomados por remorsos quando alguma situao os leva a usar um tanro de severidade perante certo comportamento do filho. Usar autoridade, ficar bravo, levantar a voz aparecem como geradores de traumas de consequncias imprevisveis. No importa a gravidade do que indispensvel interromper o remorso aparece com a fantasia de que talvez um olhar mais brando ou uma mo na cabea poderiam ser igualmente teis. a que vem a dvida e o remorso. Paira no ar o sonho de que a pacincia infinita, uma voz que jamais se altera, aceitao incondicional fariam filhos mais felizes e que jamais teriam de fazer confronto com os pais. A fantasia do amor onipotente traz esperanas de que crianas que crescem e amadurecem sem memrias traumticas sero superseres, que jamais rejeitaro os pais e tero a maior gratido pelo mar de rosas sem espinhos que a famlia foi capaz de lhes ofertar. Isso, que parece ser uma situao paradisaca, impossvel, deixa um vazio onde, desde muito cedo, deveria estar sendo treinado um leque de aptides. Exemplo: a arte da negociao por meio de dilogo e de trocas. Sem saber negociar, difcil, se no impossvel, relacionar-se com a sociedade. no toma l da c entre adultos e crianas que se desenvolvem as cpacidades de luta, de esquiva e da aproximao. A negociao um caminho, no s entre dois lados, mas que tambm deve ocorrer dentro da gente. Devemos ser capazes de perceber que o outro professor, colega, leis, catracas, montanhas, inimigos, seja l o que for tem sua prpria dinmica e com essa autonomia que o outro tem, que vamos nos haver na vida.
Ento, ser que estou dizendo que a relao pais e filhos deve ser uma eterna batalha? Nem tanto ao mar, nem tanto a terra. Nem tudo vale o confronto. Temos que treinar nos jovens a capacidade de avaliar. Isso s acontece por meio do pensar. Quando uma me cede, importante que ela deixe bem claro que preferiria que fosse diferente, mas, como as consequncias no so graves, ela est cedendo. Os porqus devem ser explicitados: o garoto quer chupar o pirulito fora de hora, mas, como ainda faltam duas horas para o jantar, a me deixa e diz o porqu. No deixaria se fosse mais perto da refeio. Dilogos simples vo ensinando, passo a passo, a pensar, ceder, impor, enfim, vo transmitir a idia de que concordar ou discordar no precisa ser arbitrrio. Muitas vezes, no d para ceder. Crianas e jovens frequentemente s querem testar a froa do tal amor ou a fora do argumento/pensamento. E a chegada a hora de lanar mo de autoridade. No raro tolher e ser tolhido pelos acontecimentos da vida. Negociar no quer dizer vencer sempre. A vida cheia de riscos, bem sabemos todos ns.
Em outros tempos, os pais eram, por incrvel que possa nos parecer hoje, um bocadinho mais modestos. Em dados momentos, aceitavam no serem capazes de dar conta do recado e delegavam uma parte da responsabilidade da formao dos filhos s instituies da sociedade civil. Cito algumas delas sem, contudo, estar pedindo o seu retorno ou defendendo os mtodos por elas usados. Elas atenderam a algum tipo de necessidade e esto praticamente em desuso, sem estarem sendo eficientemente substitudas. Deve haver razo para que essas instituies, que cito morrendo de medo, no exitam mais ou estejam agonizantes. Internatos, associaes de escoteiros, instituies religiosas etc. complementavam as funes da famlia. E os pais aceitavam esta ajuda.
Anna Vernica Mautner (Publicado na Folha de S. Paulo em 06/10/2005)
Colaborao de Lucila Costa, coordenadora regional de Amor-Exigente em Marlia |